segunda-feira, 25 de julho de 2011

O bancário e o cacique

Nunca mais esquecerei daquela manhã de fevereiro de 2005. A agência estava apinhada de gente: aposentados, militares e indígenas se moviam pelo espaço limitado daquela unidade do Banco do Brasil em São Gabriel da Cachoeira. Meu mentor, Gilmar, estava cobrindo as férias de outro colega na gerência de expediente. Isso significa que eu era o único homem na linha de frente na quarta-feira de cinzas. Lembro que realizei algo em torno de 1200 autenticações, ou 2,85 procedimentos por minuto - recorde absoluto quebrado posteriormente (jamais bati essa marca de autenticações por minuto). Cara, eu era bom (hehe).

Vi quando ele foi barrado pela porta giratória. A fivela metálica e exuberante do seu cinto irritou o detector de metais. Entrou no rabo da fila contrariado, ajustando o tal cinto. Parecia coberto pela multidão no salão, mas mesmo assim eu conseguia ver o topo do seu cocar.



Já havia me esquecido da figura mais de uma hora depois, quando chamei o próximo cliente. Ele veio de cara amarrada. Se não fosse pelo exótico adorno na cabeça, diria ser um empresário curtindo suas férias, ou algo assim.  O tênis Nike, a calça Levi's, a camisa Polo de uma cor que eu não consegui identificar... óculos escuros RayBan que ele não tirava de jeito nenhum... E um cocar. Pelo arranjo das flores e penas, julguei ser da tribo Tukano.

O homem colocou seu cartão de benefícios governamentais sobre o balcão.

- Abaru, tapiri auê se ne me çubá!*

No mesmo instante, minha mente treinada já traduziu: "Felipe, você tá lascado!" Foi isso mesmo que minha cabeça falou, como se não fizesse parte do resto do meu corpo, como se fosse um ente separado. É impressionante como, nos momentos de estresse, até mesmo sua mente e seus membros te abandonam, deixando apenas a sua alma para ser castigada pelas situações de saia-justa mais vergonhosas ou humilhantes.

- A-mi-go... Eu - não - en-ten-do - o - quê - vo-cê - es-tá - di-zen-do. Eu - não - fa-lo - sua - lín-gua...

Ele tirou o RayBan com um golpe. Vi o desconforto nos olhos do cacique se transtornarem em raiva. Havia fogo da floresta ali e ele desandou a falar, uma enxurrada de palavras naquela língua estranha:

- Arará, nu poranga çairacá perê. Macerá piri çabetê coiré.

Não precisava de intérprete. Nessa hora, eu sabia que o homem estava me xingando. Todo mundo sabe quando está sendo ofendido, não importa qual seja a língua. Você sente aquele remelexo no estômago: é a sua honra sendo violentada. O homem gesticulava e esbravejava, batendo com o punho cerrado sobre o pobre balcão de madeira coberto de fórmica cinza-azulada. Chacoalhava minha estação de trabalho e as moedinhas chegaram a sair do organizador de plástico e se espalharam pela mesa.

Eu tentei me comunicar. Fiz gestos. Pacientemente, ouvi com atenção. Por um momento, identifiquei palavras perigosas, como Tupã e Abaçaí. Ele estava me amaldiçoando... sério! Tava rogando praga pra cima de mim! A situação saía completamente do controle enquanto meus pensamentos continuavam tirando onda comigo, assistindo a toda a cena como se fosse outra pessoa. As pessoas na fila estavam incomodadas, mas permaneciam em seus lugares sem reclamar - no interior, os clientes são muito mais tranquilos e respeitam o seu trabalho... esperam a sua vez enquanto batem papo com os outros clientes... quase um evento social, ir ao banco.

Num último ato suicida, levantei.

- Vou - cha-mar - o - es-ta-gi-á-rio - que - vai - tra-du-zir - o - que - vo-cê - diz... OK?

Algo aconteceu naquele momento. A última palavra mudou o semblante do índio tukano. Quando eu ia virando as costas para implorar pelo socorro do estagiário, descendente direto de tikunas (e que falava bem a língua-geral), o cacique segurou o meu braço.

- Abaré, awañene avá. "Perdeu, playboy", foi a tradução literal que meus neurônios inventaram.

Eu congelei. Ouvi, atônito, as próximas palavras daquele homem, que depois de me deixarem em choque, marcaram para sempre a minha vida:

- DO YOU SPEAK ENGLISH?

O sotaque nova-iorquino era inconfundível. O cacique tukano falava inglês como um nativo norte-americano, mas não falava o português... Não adiantou muito. Meu inglês só não era pior que o meu nheengatu...


* Não conheço o nheengatu. As palavras aqui descritas foram criadas a partir da lembrança dos fonemas e não correspondem a vocábulos reais. Obrigado pela compreensão.

9 comentários:

  1. kkkkkk

    Essa é pra lembrar por uma vida mesmo. eu acho que eu teria uma séria e incontrolável crise de riso numa situação dessas.

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  2. Nelson... eu fiquei pasmo, travado, surpreso! Arregalei os olhos e fitei incrédulo aquele cidadão...

    Depois pensei sobre o assunto depois e percebi que a Amazônia pode não ser mais nossa há muito tempo. Há muitas ONG's e fundações estrangeiras trabalhando no meio da floresta. É uma situação esquisita.

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  3. kkkkkkk...

    Que Situação hein! nossa eu iria me acabar de rir na hora... heheheh:)

    JosiSilva

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  4. Josi, hoje eu dou muita risada, mas na hora... fiquei igual uma estátua! O cara me pegou desprevenido.
    Hehehe.

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  5. essas tuas histórias são hilárias... Acho que das duas, uma: ou a Amazônia realmente não é mais nossa, ou lá na aldeia eles possuem antena parabólica, com aqueles canais de seriados americanos. Prefiro acreditar nessa segunda opção kkkk

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  6. é assim mesmo, na hora nunca sabemos o que fazer nessas situações. kkkkk

    com uma situação dessas de um índio saber inglês só lembro da frase do Sen. Cristóvam Buarque

    "... Como humanista defendo a internacionalização do mundo, mas como Brasileiro defenderei até o fim que a amazônia é nossa!"
    :D

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  7. Robertão... Eu não duvido da parabólica. Com certeza os americanos e inlgeses já instalaram por lá!

    Nelson, sei que parece teoria da conspiração, mas ninguém pode negar que é totalmente plausível.

    De um jeito ou de outro, pelo menos me rendeu uma boa história... hehehehe.

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  8. Só de zoação eu perguntaria se ele falava francês. Ué, a cota de surpresa já havia sido alcançada...! Hehehe.

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  9. Hahaha, muito bom, adorei Felipe!

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