segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Fúria sobre duas rodas - Parte 3/3



No capítulo anterior, você viu como eu me diverti na praça da escola que fica na ladeira perto de casa (se você não leu a primeira parte, clique aqui). Tinha esquecido até da dor no joelho. Vazei, cantando o pneu da magrela, quando lembrei da ben(mal)dita prova de matemática. Mas tive um sobressalto quando cheguei em casa. Havia uma viatura da polícia estacionada no portão.

Desci da bike e caminhei devagar na direção da minha mãe, que conversava com o policial. Quando ela me viu, pude ver seus olhos marejados. Ela correu na minha direção e me abraçou. Me abraçou tão forte que parecia a Felicia Acme. "Meu filho!" Quando ela me abraçou, pude sentir que os seus batimentos cardíacos também estavam endoidecidos. Eu estremeci.

- Mãe, o que aconteceu?

- O que aconteceu, meu filho? E você ainda pergunta?

Havia um tom leve de reprovação na sua voz, mas nada além disso. Dois outros policiais saíram de dentro da minha casa, outros dois vinham pela rua com um pastor alemão numa coleira. O bicho farejava alucinado, passando pelo beco. Sirenes se aproximavam, velozes. E pude ouvir (ou seria minha imaginação me pregando outra peça?) um helicóptero sobrevoando as redondezas.

Era uma cena kafkiana. Era como acordar de um pesadelo e, na realidade, estar vivendo em um. Não sabia direito o que estava acontecendo e ainda tomava coragem para perguntar, quando eu ouvi o policial falar no rádio comunicador:
 
- Pxxxx! Filhote-Águia voltou para o ninho... Pxxxx! Repetindo... O Filhote-Águia voltou para o ninho! Pxxxx. Missão cumprida. Finalizar a busca. Vamos para casa. Pxxxxx.

E o delegado:

- Pxxxx! Avisem à Grande-Águia que já pode voltar. Pxxxx.

Do outro lado, uma voz familiar:

- Delegado, Filhote-Águia está em segurança? Câmbio? Pxxxxx.

- Positivo e operante, Grande-Águia. Filhote-Águia está seguro em Zero-Dois-Nove. Copiou? Pxxxxx.

- Copiei, delegado. Filhote-Águia tá muito encrencado. Câmbio desligo.

Por alguns segundos, fiquei imaginando: "o que é esse Filhote-Águia?" Então minha mãe:

- Nunca mais faça isso, entendeu? Nunca mais! Você saiu às 16h, para entregar umas fitas, coisa de meia-hora. Sabe que horas são, Felipinho?

Olhei no meu relógio novo (presente de aniversário). Ainda estava preso no cronômetro, que programei para conseguir entregar as fitas antes do fechamento da locadora. Apertei uns dois botões, para fazer o display voltar para o modo "hora". Li os números, incrédulo. Apertei os botões novamente, como que tentando compreender. Não tinha erro. O relógio marcava 23:12:15 16 17 18 19 20 21 22... Fiquei ali parado, olhando fixamente para o pulso. "Não pode ser! Eu saí há pouco tempo, parei rapidinho na praça, e..."

O delegado me olhou com um ar de total desapontamento. Fiquei sabendo, dias depois, que uma operação de busca foi empreendida na cidade, movimentando polícia, guarda municipal e, claro, o Exército.

Entrei em casa e guardei a bike. Deixei a bichinha num local estratégico, caso eu tivesse que desenterrar o agora agradável plano de fugir para o Japão. Enquanto lentamente curtia o que poderiam ser meus últimos momentos de vida, treinava na mente o discurso que faria para o meu pai, quando finalmente o visse. Mas em todas as minhas "reconstituições", eu sempre acabava mal. 



Barulho de passos. 
Uma longa respiração do outro lado. 
A chave girou na porta.
Ele entrou.

Eu estava postado diante da entrada, pés juntos, quase em posição de sentido. Abri a boca.

- Não. Fala. Comigo.

Foi o que ele disse, o meu pai. O que eu entendi: Você. Está. Morto.

Mas eu sobrevivi. De certa forma.

O que meu pai se recusou a dizer, minha mãe desandou a tagarelar: "Onde você estava? Na praça? Fazendo o quê? Violão com quem? Esqueceu da família é? Olha Felipe Beiragrande, francamente! Não tinha um orelhão no caminho pra cá não? Seu desnaturado! Sem cartão? Ligasse a cobrar! Que isso nunca mais se repita, tá me ouvindo, ou eu..."

E, de repente, ela parou e tapou a boca. Pra depois me vir com essa:

- Meu filho! - gritou - O que aconteceu com o seu joelho?

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Manaus quer ser a nova "terra da garoa"

Manaus: "terra da garoa"?

Uma movimentação política nos bastidores do Congresso tem perturbado a paz e abalado as relações diplomáticas entre as bancadas do Amazonas e de São Paulo. Segundo informações da agência de notícias 3K, de Brasília, a cidade de Manaus, com apoio de senadores e deputados de vários estados da Região Norte, teria entrado com uma solicitação formal na MAIA - Associação Internacional de Antonomásias Metropolitanas, na sigla em inglês, sediada em Veneza - para ser reconhecida mundialmente como a nova "terra da garoa". Isso teria obviamente irritado representantes paulistas de diversas esferas do poder, causando um mal-estar maior até do que os provocados pelas discussões sobre os benefícios fiscais da Zona Franca.

A petição foi protocolada no último dia 07 de fevereiro, e estaria acompanhada de um relatório pluviométrico comparativo detalhado, realizado pelo Núcleo de Estudos Meteorológicos da Universidade Federal do Amazonas, comprovando que as precipitações ocorridas na cidade de Manaus, nos últimos 6 meses, representam melhor a alcunha de "terra da garoa". Segundo o estudo, Manaus leva uma vantagem de 3 para 1 em todos os 13 critérios definidos pela MAIA, inclusive nos indicadores que levam em consideração a frequência, a temperatura, a quantidade e os horários das chuvas.

A notícia já teve repercussão global. O portal da BBC de Londres divulgou nota na qual um político de alto escalão da cidade de São Paulo, juntamente com advogados do escritório Borba Gato, um dos maiores da América Latina, foi destacado especialmente para apresentar a defesa do título junto à MAIA.

Esta verdadeira batalha já tem contornos épicos: "Se preciso for, estamos dispostos a levar até às últimas consequências... até o Tribunal de Haia", declarou um senador de São Paulo. E continuou, em tom de desafio: "Já entramos com petição para fazer com que o Ibirapuera seja considerado o 'pulmão do mundo'."

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Fúria sobre duas rodas - Parte 2/3


No capítulo anterior eu contei como foi minha cinematográfica epopeia até a locadora de VHS. Pois bem, no caminho de volta, que era só descida, vinha totalmente despreocupado e já com o coração em paz. Afinal, não teria que me mudar para o Japão (ninguém falava da China, naquela época) por não ter conseguido entregar as fitas. Como você viu, Yasmim me salvou. Até hoje eu não entendo o que ela via naquele zé-mané que trabalhava com ela. Mas fazer o quê, né? O mundo é  mesmo muito injusto...

O joelho estava ardendo demais, como se tivessem jogado pimenta com napalm diretamente na minha rótula... Acredite quando eu digo que chequei várias vezes para ver se eu não estava com alguma exposição de tecido ósseo, porque aquela parada ardia demais. Pela madrugada! Posso sentir agora mesmo aquele desconforto, o cheiro de sangue pisado, aquele tremor quando o vento varria a areia que estava por cima... O efeito da adrenalina da subida estava passando, na mesma medida em que a dor do machucado aumentava, torturante.

Tudo o que eu queria era ir pra casa. Já bolava planos mirabolantes pra esconder o ferimento. Sabia que, se minha mamaezinha visse aquilo, iria me proibir de pedalar por umas cinco ou seis décadas, além de "limpar" tudo com o aterrorizante merthiolate, que sim, naquele tempo ardia mais do que o próprio machucado. Nunca entendi porque fizeram um remédio que era pior que o problema que supostamente resolvia. E também não lavaria aquilo. Tomaria um bom banho da cintura pra cima, ou lavaria só o lado esquerdo do corpo, e vestiria uma calça de moleton, para encobrir as evidências... Quem nunca pensou duas vezes antes de pôr um roelho ralado debaixo do chuveiro que atire a primeira pedra!

Vinha eu descendo a ladeira, na manha, brincando de "pedalar pra trás", quando um coro de vozes acertou em cheio minhas maquinações e me assustou a tal ponto que quase me fez cair de novo... Num primeiro momento pensei que tinha sofrido também uma concussão na queda em frente a locadora... Mas o grito se repetiu, ainda que agora estivesse mais distante... E agora as vozes em minha cabeça ecoavam o meu nome.

Veio aquele frio na espinha, digno de filme de terror. Calafrio quase paralisante que eu só viria a sentir novamente vários meses depois, no episódio do cachorro (que fica para um próximo post), naquela mesma ladeira. Reuni o que eu ainda tinha de forças e estacionei minha Acrobatter gentilmente no meio-fio. Olhei para trás.

Lá estavam meus amigos de Casa do Escritor. O que é Casa do Escritor? Hmmmm... Fica para um outro post (agora já estou devendo outras duas histórias... aonde é que isso vai parar?). O importante é saber que eram meus amigos, jovens, artistas, gente da melhor qualidade e espécie. E então eu esqueci da dor no joelho, do susto, da prova de matemática do dia seguinte. Fiz meia-volta e fui encontrá-los.

Eles estavam na praça que ficava em frente a um colégio. Foi nesta praça que eu vi a Amanda, menina linda por quem passei três anos perdidamente apaixonado, beijar o José Carlos, um de meus melhores amigos, debaixo de uma goiabeira. Mas isso fica para um outro post, afinal, a minha fúria sobre duas rodas acontece beeeeeeem antes daquele fatídico dia, no aniversário de quinze anos da Marília.

Já fui entrando na rodinha emendando o refrão de "Eu Quero Você Como Eu Quero", do Kid Abelha, que o MauMau arranhava no seu violão surrado. Eu não percebi, mas algum tempo depois ele me disse que cantei essa parte olhando fixamente para Amanda. Não lembro disso. Pode ter sido totalmente inconsciente, afinal.




Cantamos e cantamos. Fizemos versos de improviso. Contamos piadas. Falamos dos projetos. Combinamos um cineminha no próximo findi. Eu, do alto da minha hipocrisia adolescente, zoei o Igor que se amarrava na Karol mas não tinha coragem de falar isso pra ela... E cantamos de novo. Não sei porque, mas o assunto mudou pra escola... Ah! Sim, Amanda comentou sobre o livro que a professora de Português obrigou todo mundo a ler: "O Cortiço", que o pai dela leu uma parte e achou que era totalmente impróprio para "crianças". E que ia cair na prova. Prova! Daniel deu um tabefe na própria testa e gemeu: "Cacilda, a prova de Matemática!"

A despedida foi em ritmo acelerado, mas calorosa. Amanda usava um condicionador que deixava seus cabelos loiros com cheiro de chocolate. Peguei minha bicicleta ("Guerreira", pensei triunfante) e me atirei na rua, agora pedalando forte até mesmo na descida da ladeira, alcançando uma velocidade de cruzeiro de um pequeno monomotor, e na hora lembrei da cena clássica do ET. Cruzei a esquina de casa como um raio, e meu coração disparou - e não era por causa do esforço físico...

Havia uma viatura da polícia na frente do meu portão.