terça-feira, 23 de agosto de 2011

Fúria sobre duas rodas - Parte 1/3


- Deixa comigo!

Foi o que eu disse a meu pai, enquanto tentava encaixar as 8 (sim, OITO!) fitas de vídeo (sim, VHS!) na minha pequena mochila. A missão era bem simples: pedalar alguns poucos quilômetros até a videolocadora e devolver as fitas antes do prazo fatal. Já que eu e meu velho não alugávamos vídeo por unidade, mas por quilo, a multa por atraso seria estratosférica se eu falhasse. Ele queria entregar de carro, mas na época - acredite! - eu gostava de atividade física (credo!) e tava muito a fim de desenvolver minhas habilidades ciclísticas.

E aqui vai uma notinha: eu só aprendi a andar de bicicleta sem rodinha aos 13 anos, ou seja, pouco mais de quatro meses antes do episódio que aqui vou escrevendo, o que quase causou traumas irreparáveis em minha auto-estima, uma vez que via todos os meus amiguinhos voando baixo nas magrelas enquanto eu ficava amuado num canto, desejando ter foguetes nos tênis.

Voltando... Eu insisti tanto que ele permitiu.

- Você só tem 30 minutos! Vai lá e volta rápido.

Era uma bela tarde de domingo. Não lembro quais eram os filmes. Mas lembro que tínhamos acabado de assistir o último e eu estava empolgado com as cenas. Era um filme que tinha uma baita cena de perseguição, e eu me sentia o cara, o maioral. No pé da ladeira íngreme, mudei as marchas da minha Acrobatter (era o nome da minha bicicleta, dou um doce pra quem lembrar) e pedalei em pé na máquina, imaginando snowmobiles no meu encalço. As fitas chacoalhavam dentro da mochila e faziam um barulho bacana, que imediatamente assimilei como o ronco do meu "motor".


A locadora ficava em uma rua movimentada, logo após a igreja da matriz (estou falando de Mogi Guaçu/SP, moçada, e não de Manaus... toda cidade no País tem uma igreja matriz...). Tinha uma esquina mega perigosa em que quem subia não via bem os carros que estavam descendo, até que estivessem frente a frente, o que ocasionalmente gerava acidentes bem feios.

Eu me aproximava veloz. "Lá está! A curva da morte", minha mente cinematográfica roteirizou. Avancei sem medo, afinal, eu estava pilotando uma máquina potente e já tinha planejado uma manobra que faria os malditos snowmobiles se arrebentarem contra a parede da escola de karatê que ficava bem na esquina... Dei uma conferida no relógio, presente recém-ganhado (!!!) no aniversário, belo relógio digital com cronômetro. Ainda tinha 5 minutos. O desafio tava no papo... isso, claro, se eu conseguisse despistar os capangas de algum mafioso que vinham deslizando pelo asfalto em seus trenós de neve.

Não pisei no freio... apenas parei de pedalar... Joguei todo o corpo para a direita, imitando um cara chamado Alexandre Barros. O joelho quase encostou no chão... Já estava sorrindo feliz quando um caminhão logo à frente passou por um quebra-molas e derramou parte de seu conteúdo sobre a minha rota de fuga. Num reflexo, puxei o guidão para cima e evitei a sujeira da pista... mas o pneu traseiro da Acrobatter não teve a mesma sorte, e eu derrapei na pista. Vindo na direção oposta, uma picape trazendo torcedores bêbados de um certo time de cores pretas e vermelhas fazia algazarra. Sem controle algum do meu veículo, fechei os olhos e me preparei para o impacto.

Ouvi um apito de freio brusco e senti cheiro forte de borracha queimada, antes de ouvir a explosão...

- Sai do meio da rua, moleque!

Foram as gentis palavras de um motorista estressado que me acordaram do transe. Olhei para trás. A picape havia se chocado com os dois trenós pilotados pelo inimigo. "Sorte", pensei com um sorrisinho. Levantei. Algumas fitas se esparramaram pela rua. Guardei tudo rapidamente. Com carinho, reergui minha companheira de duas rodas. "Boa menina"...

O relógio apitou. Tinha apenas 10 segundos. Subi na bicicleta com um rápido movimento. O apito do meu cronômetro era como o anúncio da iminente detonação de um desastre nuclear. Avistei o letreiro amarelo e preto da locadora. Era como ver o pote de ouro no final do arco-íris. No estacionamento, desmontei e larguei a magrela, que ainda rodou sem motorista por alguns metros, se chocando com a vitrine de uma loja de roupas infantis que ficava bem ao lado. Venci os 6 degraus da escadinha num salto, botei a mão na maçaneta e girei...

Nada aconteceu.

Tentei com mais força, e o único resultado diferente que obtive foi um grunhido de dentro da loja. "Já fechamos!", vociferou o funcionário de uniforme e boné engraçados, com um esfregão na mão. Bati freneticamente na porta. Mostrei o joelho ralado, a mochila suja. Choraminguei, pedi por favor.

Nada aconteceu. 

"Meleca!", era o único xingamento que eu tinha na mente naquela idade. Sentei no degrau e observei o pôr-do-sol, que trazia consigo a minha condenação. Já estava tudo planejado. Não voltaria nunca mais para casa... Venderia as fitas para comprar comida. Pedalaria em direção ao litoral, e de lá entraria em um navio para o Japão.

Com o efeito da adrenalina passando, o joelho começou a arder. O sangue seco misturado com areia criou uma crosta nojenta na minha perna, que nem eu mesmo ousava tocar. Foi então nesse momento que um anjo apareceu.

- Que machucado feio, heim, Felipinho?

Ah, sim, sim... Olhei na direção daquela voz já sabendo o que encontraria: Yasmin, a caixa da locadora, uns 12 anos mais velha que eu. Um anjo. "O que você andou aprontando, mocinho?"

- Errr... bem, eu... a esquina da morte... areia... bluuur... trenós de neve... e... bom... hmmm...

Ela abriu a porta da locadora, e estendeu a mão. Instintivamente, eu também estiquei a minha. "As fitas, rapazinho! As fitas! Se não devolvesse hoje, estaria numa encrenca daquelas, né?" Eu acenei que sim. Abri a mochila. Entreguei as ditas-cujas, algumas à milanesa. Ela sorriu e berrou, entrando na loja: "Ô Rômulo, por que você deixou o coitado na porta?" Ainda pude vê-la beijando o zé-mané de boné esquisito e esfregão.

Mas antes que eu ficasse com ciúmes, ou sentisse meu coração partir, um último raio do ocaso refletiu na pintura verde-metálica da minha magrela. Ela sorriu pra mim e eu retribuí. Limpei a areia do selim. "Vamos voltar pra casa."

E essa era a melhor parte de devolver fitas. Afinal, a volta era só descida!!!